Marcos era um garoto muito bom e inteligente, e sempre quis praticar artes marciais. Não por uma razão óbvia, mas apesar de sua boa-índole, sua maior motivação era: vingar-se dos outros alunos que sempre praticavam bullying com ele. Certo dia, depois de sentir-se humilhado por eles, foi até uma escola de Kung-Fu, sem que seus pais soubessem.
O Mestre dessa escola se chamava Liu, era brasileiro, porém tinha ascendência chinesa, da segunda geração no Brasil.
Liu era alguém muito rigoroso quanto aos métodos de transmissão de seus conhecimentos. Antes de aceitar quaisquer alunos, fazia uma espécie de entrevista com os mesmos e verificava os reais motivos pelos quais eles desejavam ingressar em sua escola.
Marcos chega até a escola e comunica seu desejo de praticar Kung-Fu a um dos alunos graduados que o atendeu, e, então, foi-lhe pedido que aguardasse a presença do Mestre Liu, para uma conversa.
O Mestre chega até a escola e então, olhando muito profundamente nos olhos de Marcos, lhe diz:
— Olá, meu jovem. Me chamo Liu. Como se chama?
— Olá, me chamo Marcos.
— Muito bem, Marcos. O que lhe traz aqui?
Marcos, já intencionado esconder seus reais objetivos, responde:
— Eu gosto de Kung-Fu. Assisto muitos filmes e acho fantástico tudo aquilo que os lutadores fazem.
Mestre Liu o encara bem profundamente, porém, com ar sereno, lhe diz:
— Muito bem… Então sua intenção é se tornar um ator, um artista marcial?
— Não! Minha intenção é saber fazer tudo aquilo que eles fazem!
Mestre Liu sorri e o indaga:
— Então não gostaria de aprender Kung-Fu para se tornar um artista marcial, ou um ator, mas gostaria de saber fazer tudo aquilo que os artistas marciais fazem… Tudo bem, mas, para quê?
Marcos começa a se irritar e percebe que não iria mais conseguir esconder seus reais objetivos por muito tempo, mas ele tenta:
— Eu quero saber fazer tudo aquilo. Só isso.
Ainda com uma serenidade e amorosidade inabaláveis, Liu, lhe responde:
— Meu caro jovem, se não tem um propósito, um objetivo definido, ou mesmo alguma noção do que irá encontrar aqui, essa escola não é para você. Aqui só aceito alunos que possuam hombridade nas palavras, pureza no coração e um propósito definido em mente. Infelizmente, não posso lhe aceitar, caso não tenha desenvolvido nenhuma dessas aptidões. Se deseja aprender o Kung-Fu, deve se focar nisso, antes de tudo.
Ao ouvir essas palavras, Marcos sai furioso e questiona-se: “Quem ele acha que é para não me aceitar?”. Então, ele vai para casa, mas não consegue tirar aquelas palavras de sua mente. Continua indo à escola, porém permanece sofrendo bullying, alimentando sua raiva e indignação, cada vez mais.
Alguns dias se passam e, ainda sem conseguir parar de pensar naquelas palavras do Mestre Liu, ao sofrer um insulto de um de seus colegas, Marcos não se contém e acaba desferindo um golpe em seu colega de classe, o que o levou a três dias de suspensão da escola e uma sensação terrível diante de seus pais, nitidamente, decepcionados com ele.
“Eles fazem isso comigo direto e nada acontece! Agora eu fico aqui em meu quarto, meus pais estão tristes comigo e, quando voltar para a escola, tudo vai se repetir novamente!”, disse Marcos, durante alguns momentos de pranto, enquanto seus pais conversavam sobre ele, na cozinha.
Durante esse período de suspensão, em seu quarto, Marcos, reflete sobre suas ações, sobre suas omissões e percebe que deveria contar aos seus pais o que havia acontecido, antes de agredir ao seu amigo, porém, estava com tanta vergonha, que não conseguia dirigir-se aos mesmos. Também ainda não conseguia tirar da cabeça a frase daquele Mestre de Kung-Fu, porém, começava a permitir-se aceitar que não fora aceito por sua própria falta de honestidade.
Na manhã de sábado daquela semana, após os três dias de suspensão da escola, a mãe de Marcos pede que ele vá comprar alguns pães. Ele vai, mas observa uma apresentação de Kung-Fu em uma praça próxima da padaria onde iria. Ele chega até lá e encanta-se, observando todos aqueles movimentos e imagina-se fazendo tudo aquilo em uma praça também, o que “assustaria os menos-avisados”, mas, em seguida… entristece-se ao lembrar de que não havia sido aceito pela escola marcial. Então, abaixa sua cabeça e, ao se virar no sentido oposto da apresentação, tencionando se afastar, o Mestre Liu lhe toca o ombro e pergunta:
— Olá, Marcos. Ainda quer praticar Kung-Fu?
Marcos se espanta, seu corpo se volta instantaneamente ao Mestre e diz:
— Olá, Mestre Liu. Eu gostaria sim, mas o senhor não pôde me aceitar.
— Passado, ou futuro, Marcos. Não existem, sem que haja eternamente o presente.
— Mas, como assim, Mestre Liu?
— Eu não pude aceitar-lhe no passado, por alguns motivos. Porém, não estamos vivendo neste passado para que eu não o aceite agora. A menos que esteja eternizando seu passado, todo o resto é mutável, tudo se modifica e tem infinitas possibilidades de ser, no seu presente-agora.
Marcos entende, anima-se e, então, abre-se:
— Entendi, Mestre. Não quero eternizar o meu passado. Quero ser diferente e, quando me perguntou sobre o porquê de eu desejar praticar Kung-Fu, eu não fui sincero. Na verdade, eu tenho muito medo, raiva, mágoa e tristeza por estar sofrendo na escola e ninguém saber. Sofro bullying todos os dias e me fazem passar por culpado. Acabo de cumprir três dias de suspensão na escola e meus pais estão muito tristes comigo. É por isso que eu gostaria de treinar Kung-Fu, pois eu poderia me vingar de todos aqueles que me maltratam, ou pelo menos, fazê-los terem medo de mim.
Liu, lhe responde:
— Muito bem, meu jovem. Porém, eu lhe disse que só aceito alunos que possuam hombridade nas palavras, pureza no coração e um propósito definido em mente, lembra-se? Percebo que você está tendo hombridade em suas palavras e um propósito em mente, apesar de discordar dele, mas ainda lhe falta alguma coisa…
— Pureza no coração… — disse Marcos, abaixando sua cabeça, em tristeza profunda…
— Exatamente! — disse o Mestre.
Marcos, então se lembra de comprar os pães e diz:
— Tudo bem, eu já sabia que não poderia ser aceito. Esse ponto para mim é muito difícil, porque sofro todos os dias e não há ninguém que me entenda, ou passe por isso em minha pele.
O Mestre, amorosamente, lhe pergunta:
— Você já contou para os seus professores, ou mesmo pais? Já experimentou ver se, realmente, ninguém seria capaz de lhe entender? Será que você é assim tão especial e diferente de todos, que ninguém seja capaz de lhe entender?
Marcos se sente provocado e então, responde enfurecido:
— Quem você acha que é para dizer o que eu sou ou não? Quem é você para me dizer que posso praticar, ou não, Kung-Fu? Você não me conhece, não sabe nada sobre mim! Você era alguém que pensei que pudesse me ajudar a ficar mais forte, mas só quer me ver para baixo, sempre me colocando em posição inferior. Saiba que eu não preciso de você para me sentir forte, eu já sou forte! Eu não preciso de você para que me diga quem sou eu, ou mesmo o que devo fazer, ou não!
Marcos acaba de vociferar, de forma ofegante, ao Mestre Liu, que, com um sorriso sutil, lhe diz:
— Agora você está pronto para o Kung-Fu.
Com essas palavras, Marcos, sofre um choque de percepção:
— O que disse?
— Lembra-se do que estava faltando para você? — disse Liu.
— Claro! Mas, não vejo como isso possa ter sido atingido, após tudo o que lhe disse! Está brincando comigo?
— Não há porque brincar com coisas sérias… Você precisava de um coração puro, agora, o tem.
— Eu não entendi.
— Perceba que a pureza vem do esvaziar-se, não do preencher-se. Não é algo que se deva ser adquirido. Depois de tantas palavras que, de si, foram retiradas, seu coração deve estar mais puro.
Marcos, espantado por perceber que toda aquela situação fora provocada pelo Mestre, pergunta:
— Mas, me diga, eu lhe disse que gostaria de me vingar, isso é ruim, como posso estar com um coração puro?
— Lembra-se de tudo o que me falou? Agora, imagine-se falando as mesmas coisas que me falou, para cada um deles, com a mesma força com a qual me disse. Vamos, faça isso agora.
Marcos para por um momento, faz o que o Mestre lhe sugeriu e diz:
— Entendo agora. Eu não dependo deles para ser eu mesmo. Na verdade, eu não dependo de ninguém, porque somente eu vivo e sinto como eu mesmo.
Então, com suas perguntas certeiras, Liu, o indaga:
— Com isso em mente e coração, ainda sente a necessidade de vingar-se, Marcos, sabendo que ninguém tem o poder sobre você, ou de determinar suas ações?
Marcos, brandamente, responde:
— Realmente, não… Não há necessidade de lutar por algo que já é meu. — Então, continua — Mas, Mestre, como agir nessa hora? Entendo que não tenha sentido, mas quando a coisa toda está acontecendo, como agir? Eu fui suspenso porque machuquei um desses colegas, mas, tenho certeza que agora vão me provocar ainda mais, depois disso.
— Faça como o sábio, que age, sem agir.
— Agora você está brincando, não é? O que quer dizer com isso? Eu preciso agir de alguma forma! Sempre mantive-me calado, sofrendo em silêncio, não ajudou em nada. Na hora em que decidi agir, as coisas foram ainda piores.
— Pois é, meu caro, as coisas sempre pioram quando interferimos de forma impulsiva. Ao que deu o nome de ação, na verdade, foi uma reação.
— Sim, acabei me sentindo provocado, mas então, qual seria a forma correta de agir?
— A ação pura é a resposta. Assim como o seu coração deve tornar ausentes o medo, o ódio, a mágoa, etc., para que se torne puro, as suas ações, também. Só se é possível agir, puramente, com consciência, pois qualquer outra coisa confundida com uma ação, é reação, a nível de manifestação inconsciente. Até mesmo os sentimentos ruins que deixa brotarem em seu coração, são reações originadas no campo emocional.
Marcos reflete e, então, pergunta:
— Então, quer dizer que, se eu tiver meu coração puro, naturalmente, minhas ações serão puras e não teria mais motivos para fazer nada contra alguém, já que os sentimentos impuros não mais estariam em meu coração?
— Como você mesmo está percebendo, sim…
— Então, eu continuaria sem agir… apesar de algo ter mudado, voltamos ao ponto zero…
Mestre Liu, sabiamente, conclui:
— Perfeito! É esse o sentido de esvaziar: chegar próximo ao zero! Por isso o sábio age, sem agir. Sua atitude agora é consciente, optando por não fazer nada, pois enxerga a insensatez de tais pessoas, a inconsciência de suas reações. Por isso, age com tolerância e compaixão. Essa é a Ação Pura. Esses são atributos que deve guardar consigo, em seu coração.
— Mestre, muito obrigado por tudo. Entendo agora que não preciso do Kung-Fu para vingar-me, ou causar medo, mas quero aprendê-lo para ser alguém melhor.
Marcos despede-se e leva os pães à sua mãe, que já estava preocupada. Resolve conversar com ela, explicando tudo o que acontecia com ele, mas agora, entendendo o quanto sua mãe poderia estar preocupada. Ele não mais sentia-se solitário, nem fraco, pois seu coração se esvaziara de todos os sentimentos dolorosos que carregava. Agora pedia a ela que lhe permitisse treinar Kung-Fu com o Mestre Liu… Ela aceitou.