Certa vez um mestre chinês disse: “Quando encontrar um tigre, não lute contra ele pois, certamente, perderá a sua vida; ao invés disso, lute com ele.” Ao escutar ou ler esta frase pela primeira vez, não conseguimos perceber a profundidade da sabedoria que ela contém. A intenção deste artigo é, justamente, desvendar o sentido dessa frase tão curta, porém, tão profunda.
A primeira coisa que percebemos nesta frase é a pequena-grande diferença entre as palavras “com” e “contra”. É certo que, por um mau-hábito linguístico, ao nos referirmos a dois adversários, mais especificamente dois lutadores, dizemos que um luta “com” o outro, porém, considerando o sentido real da palavra, e comparando-o com a realidade dos fatos, concluímos que ambos lutam um, contra o outro, e não com o outro. Sendo assim, a aplicação da palavra “com”, neste contexto, é errônea.
Para resumir, podemos dizer que a palavra “com”, soma, enquanto que a palavra “contra”, subtrai. É altamente recomendado que nós consigamos compreender essa diferença cabal entre ambas, se quisermos entender com total profundidade, o ensinamento do mestre.
Todas as vezes que empregamos a palavra “com”, devemos verificar se a mesma intenciona uma adição, uma soma: quando dois amigos estudam juntos, estão estudando um com o outro; quando jogadores de futebol treinam juntos, estão treinando uns com os outros. Nestes exemplos subentendemos parcerias, alianças formadas em prol da mesma meta, pessoas que unem suas forças para alcançarem um determinado objetivo.
A utilização da palavra “contra” é bem diferente, pois nos trás um sentido de contrariedade: quando a opinião de alguém foi contrária à do outro; quando alguém briga contra o outro; quando um se posiciona contra o outro. Neste contexto, não há parceria, mas sim, rivalidade. Subtraem-se as forças, pois cada parte envolvida precisa lutar para defender a sua causa, bem como derrubar a do outro. Existe aí uma drenagem brutal de energias dada pela acirrada competição de ambos os envolvidos. Inexoravelmente, o mais forte sobreviverá.
Agora que entendemos as diferenças, podemos prosseguir com uma análise mais profunda. Quando o mestre diz: “Quando encontrar um tigre, não lute contra ele pois, certamente, perderá a sua vida (...)”, percebemos que ele se refere, justamente, às consequências citadas no parágrafo anterior: a pessoa deverá lutar para defender a si mesma, bem como para derrubar o tigre, o que acarretará em sua provável morte, já que um humano mediano pesa cerca de setenta quilos, enquanto um tigre, pode chegar a mais de trezentos! Quem teria maior probabilidade de sobreviver? Obviamente, já sabemos a resposta.
Ao nos posicionarmos em um extremo, criamos um outro, mas esse não é o problema. O problema real se dá quando nos contrariamos (tornamo-nos contrários) ao outro lado. A dualidade existe e é inerente à nossa realidade, porém, devemos utilizá-la para obtermos um aprendizado mais profundo das coisas, através de nossa observação e consideração dos pontos de vista opostos. Lembrando que oposto não é contrário!
Neste momento começamos a mergulhar mais profundamente na mensagem. Para irmos mais fundo, é necessário que entendamos que “o tigre” é análogo a qualquer coisa, pessoa, ou situação enfrentada por nós e que, aparentemente, esteja nos causando um certo nível de ameaça. Todo o ser, por mais primitivo que seja, detém o instinto de sobrevivência, esse que o condiciona a estar totalmente alerta e disposto a reagir, mediante ao mínimo sinal de perigo. Muitas vezes não percebemos, mas aquele que mais parece ser rígido, bruto, duro, amedrontador, ou outros adjetivos semelhantes, cria essa persona justamente para se proteger, pois sente-se, por algum motivo interno, constantemente ameaçado.
Com isso, entendemos que boa parte de nossas lutas se dão pelo nosso medo. O mais estranho é que, ao mesmo tempo que lutar nos parece conferir um certo status de coragem, também nos mostra o quanto estamos amedrontados. Temos tanto medo, que entramos em modo de sobrevivência e, ao mínimo sinal de perigo, atacamos. Somos treinados a ver pessoas, coisas e situações ao nosso redor sempre como possíveis ameaças, de forma que vamos desenvolvendo, até a nível inconsciente, uma necessidade de nos defendermos e de atacarmos.
Por mais lamentável que possa ser, somos regidos por tais pensamentos, por tais padrões criados pela nossa sociedade. Infelizmente, o único meio alternativo que as pessoas encontram para evitarem conflitos é escondendo quem são. Elas se olham com medo, se falam desconfiadas e não se abrem verdadeiramente, pois têm medo de serem quem são e acabarem sendo atacadas por isso. Neste contexto, aparentemente, não há luta, ou conflito, certo? Porém, esse é um dos conflitos mais dolorosos que existem: a luta do ser contra si mesmo!
Quantas pessoas estão se sentindo totalmente anuladas, totalmente perdidas, sem saberem quem são, com crises de identidade? Quantos de nós conhece alguém assim? Fala-se tanto da depressão, mas não se fala das verdadeiras causas da mesma. As pessoas estão perdendo-se de si mesmas, por não saberem mais quem, verdadeiramente, são! Isso precisa ser compreendido urgentemente. A depressão não consiste de aspectos pessoais, somente, mas, principalmente, sociais. Quantos padrões temos de assumir para nos sentirmos, minimamente, aceitos pelo meio em que vivemos? Essas questões são muito profundas e devem ser tema de análise profunda, pois envolvem a todos nós.
Sendo assim, tanto a luta contra algo ou alguém, bem como contra si mesmo, devido à autoanulação, ocorre pelo medo (de perder; de não ser aceito; de morrer; de sofrer etc.). Isso é algo de muita relevância, pois descobrimos a causa de nossas reações adversas e contrárias. Se já entendemos que a causa de lutarmos “contra” é o medo, devemos buscar a causa de lutarmos “com”. Mas, antes devemos entender o que seria lutar “com”, nas palavras do mestre: “(...) ao invés disso, lute com ele”.
Como dissemos antes, o tigre é análogo à toda a situação, pessoa etc., com que devemos lidar. Quando falamos anteriormente da palavra “com”, falamos de uma adição, de uma aliança feita com o intuito de se atingirem determinados objetivos. Sendo assim, entendemos que, para “lutarmos com”, precisamos descobrir um objetivo nobre em comum. Mas, porque nobre? Porque somente com objetivos nobres em comum é que saímos da esfera do medo.
Para “lutarmos com”, é preciso que estejamos ausentes de medo, pois, somente assim conseguiremos nos abrir para sermos nós mesmos, transparentes, sem resistências, sem reações contrariadas, sem julgamentos, ou reservas. Ao estarmos nesse estado, não representaremos ameaças ao outro, pois não queremos defender nada, logo, não precisamos atacar coisa alguma. Ambos sentimos liberdade para sermos quem somos, pois a tensão desaparece. O conflito não se estabelece. Mas, a pergunta que fica é: como atingir tal maestria em relação a esse estado? E a resposta talvez seja a chave mestra da mensagem do mestre, a cereja do bolo: amor.
Aqui não estamos falando da paixão, sexo, ou do amor romanceado. Não estamos falando do amor oficializado, religioso, ou deturpado. Estamos falando do amor puro e verdadeiro, capaz de amar incondicionalmente, de libertar e torcer, de coração, pelo outro. Não há outra forma de “lutarmos com”, sem que amemos. Não há outra forma de unirmos forças e vencermos juntos, se não estivermos livres do medo que nos faz competir para definirmos quem será o “vencedor” e o “perdedor”.
O amor é uma força neutra, que assume equilíbrio e ordem, em si mesmo e em tudo aquilo em que for aplicado. A partir deste momento, todo e qualquer “tigre”, será visto com outros olhos, não como ameaça, mas como uma grande força a ser direcionada para a realização de nobres objetivos. O amor leva à luz da compreensão, da sabedoria. Ele eleva o ser a uma dimensão ausente de competições, de guerras e conflitos, pois o mesmo não tem polaridades, logo, não possui polos contrários.
Dito isso, que saibamos identificar as nossas lutas, discernindo se estão relacionadas com os nossos medos — na competição com o outro, na defesa e no ataque —, ou se elas têm relação conosco mesmos, em nossas constantes autoanulações. Caso percebamos que as nossas lutas não têm origem em tais circunstâncias, provavelmente estaremos rumando para “lutar com” o nosso tigre, que agora, se faz tão amado.
Quão fantástica é a profundidade da mensagem do mestre chinês, que nos disse tanto, com tão poucas palavras.