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O Banco de Deus

Em uma cidade do interior, um humilde roceiro era alvo de admiração por todas as pessoas da região, já que possuía imensa alegria e gratidão. Todos os dias, levantava-se cedo, tomava banho, café da manhã e saía para trabalhar com sua enxada na mão, sob os primeiros raios de sol. Seus vizinhos, sempre que passavam por ele, o viam cantarolando, assobiando e sorrindo, desejando um belo "bom dia" a quem passasse por ali.


Nesta região, havia um menino que sempre, após a escola, passava por ali, cumprimentava o roceiro, recebia uma maçã do mesmo e ia para sua casa, ajudar seu pai com algumas tarefas em casa. 


Infelizmente, em um determinado dia, o pai do menino veio a falecer. Foi uma grande comoção na região, pois, assim como o humilde roceiro, ele também era muito querido por todos. A mãe do menino ficou desolada e o garoto, revoltado. 


Sua raiva foi perceptível logo nos primeiros dias, pois agrediu um colega de classe que o importunou, o que lhe acarretou uma semana de suspensão da escola. O roceiro começou a notar que o garoto não mais passava por ali e resolveu visitar a casa da família para ver como estavam as coisas.


Ao chegar lá, a mãe, ainda bem abalada e chorando intensamente, contou o ocorrido com o garoto que, até mesmo em casa, encontrava-se incontrolável e que, por isso, ela o tivera deixado de castigo. O roceiro pediu para que a mãe lhe permitisse levar o garoto consigo para lhe ajudar em algumas tarefas, durante três dias. A mãe permitiu e ele, o garoto, acompanhou o roceiro.


Pelo caminho, o silêncio reinava. Mesmo que o roceiro tentasse conversar com o garoto, a conversa não fluía, então, resolveu respeitar o momento do pequeno. Quando chegaram, tomaram café e se prepararam para dormir. Aquela noite foi tão silenciosa que nem o som dos grilos se podia ouvir...


No outro dia, logo pela manhã, o senhor fez o mesmo ritual de todos os dias, porém preparou o café para os dois. O menino ainda encontrava-se dormindo e o roceiro foi chamá-lo. Cerca de quinze minutos depois, o garoto desceu e eles tomam café juntos. Como de costume, aos primeiros raios de Sol, o trabalho se iniciava.


Durante todo o dia o roceiro ensinava o menino a como arar a terra, como plantar, como colher e como carregar os frutos colhidos.  O menino fica exausto de trabalhar, mas, como de costume, se pergunta como aquele humilde roceiro poderia trabalhar com tanta suavidade, força, alegria e leveza. Enfim, terminaram todo o trabalho e voltaram para casa. Esse foi o fim do primeiro dia.


No segundo dia, o garoto estava um pouco mais esperto e levantou-se no mesmo horário que o senhor, tomaram café juntos e saíram quinze minutos antes do que no dia anterior. Agora o garoto já sabia, basicamente, o que tinha de fazer. Devido a ter feito tudo com tamanha velocidade, se cansou mais rapidamente que no dia anterior. O roceiro percebeu e perguntou ao garoto se ele já tinha terminado todas as tarefas e ele respondeu que sim. Então, o senhor lhe ensinou a regar e pediu para que ele fosse até a horta e regasse todas as plantas.


O dia estava se encerrando e o garoto, totalmente esgotado, não teve nem tempo para pensar na morte do pai. Ele ficava cada vez mais intrigado com a disposição e energia daquele homem, que parecia nunca se cansar. Porém, ao voltarem para casa e, ao recolherem-se, o garoto, sentiu saudades do pai e começou a chorar em seu leito, até que, por cansaço, adormeceu. Esse foi o fim do segundo dia.


No dia seguinte, toda a jornada se repetiu e o garoto quis seguir o ritmo do senhor, justamente para ver se ele conseguiria sentir-se tão bem como ele ao final do dia. Começou a fazer as coisas mais devagar, com maior atenção aos detalhes, seguindo o mesmo passo do roceiro. Foi então que percebeu que a macieira que lhe conferia a sua maçã diária, estava morrendo por algum motivo.


Vendo isso, o menino associou a morte da mesma com a morte de seu pai, então largou suas ferramentas no chão, e, revoltado, começou a chorar e saiu correndo. O roceiro percebeu a cena e foi até onde o garoto estava. Ao topo de uma colina, o senhor havia instalado um banco espaçoso para olhar o poente. O menino se encontrava ali. O senhor sentou-se ao seu lado e lhe perguntou:


— Vê como aqui é bonito? Eu chamo esse banco de O Banco de Deus.


O menino continua enxugando suas lágrimas em silêncio. O senhor prossegue:


— Você se machucou com alguma ferramenta? 


O garoto balança a sua cabeça, negando a indagação do roceiro, que também fica em silêncio, mantendo-se ao lado do menino, observando o poente. Em um determinado momento o garoto diz:


— A macieira está morrendo e terá o mesmo destino de meu pai.


Ao dizer isso, suas lágrimas, novamente, começam a rolar. Então, o senhor diz:


— Sabe menino... Você é tão grande como seu pai. Tem a mesma coragem e determinação dele. Tem força e resignação... Vejo muito de seu pai em você.


O menino desabafou, chorando intensamente:


— Por quê? Por que ele teve que ir embora? Por que nos abandonou? Ele não podia nos deixar.... Não podia....


O senhor o abraçou, conferindo-lhe afeto, enquanto as lágrimas brotaram de seus olhos e molharam a sua face. Então, o menino diz:


— Deus não existe! Se existisse não teria deixado meu pai ir embora. 


Ouvindo a afirmação revoltosa do garoto, o roceiro lhe diz:


— Menino, você aprendeu a arar a terra, a plantar, a regar, a colher. Lembra-se da bananeira da qual colhemos as pencas?


O menino respondeu:


— Sim...


O senhor continua:


— Viu que a bananeira morreu quando retiramos as bananas? Então, assim como aqui na roça, também é na nossa vida. Temos de aprender a arar a terra, ou seja, nos preparar para a vida; temos de plantar boas ações e regá-las todos os dias. Assim, estaremos dando bons frutos durante a nossa caminhada e, ao morrermos, estaremos muito felizes, pois deixamos uma bela e fértil plantação neste mundo. Assim como as plantas e as árvores que cuidamos, nascemos, crescemos e morremos.


O menino olha para o senhor e diz:


— Então, meu pai morreu feliz? Feliz em ter nos deixado?


— Ele morreu feliz, mas não por ter deixado vocês, afinal, nem mesmo ele poderia saber que partiria, porém, morreu feliz por ter plantado felicidade, sendo assim, colhia felicidade todos os dias, não só em sua morte. Ele sabia que havia deixado boas sementes, como você, que se encarregará de deixar esse mundo ainda mais belo, através dos frutos que dará. Com certeza, ele tem orgulho de você, de onde quer que ele esteja.


Ao ouvir estas palavras, o menino se emociona e abraça o senhor novamente, chorando compulsivamente. Neste momento, ao retirar sua face envolta em lágrimas do peito do humilde senhor, lhe olha nos olhos e diz:


— Sinto saudades do meu pai. Me preocupo com ele, não sei se ele está bem... Minha mãe disse que Deus está cuidando dele. Mas, onde está Deus? Por que eu nunca o vejo? Por que ninguém nunca o viu?


Então, o senhor voltou a sua face ao menino, fixou seu olhar bem fundo em seus olhos, lhe sorriu levemente e, passando a mão em sua cabeça, lhe fala:


— Sabe por que não conseguimos vê-lo? Porque não olhamos com atenção. Olhe a grama, olhe... Olhe o Sol se pondo, olhe... Olhe como os pássaros se recolhem no mesmo horário e se levantam ao mesmo tempo... Olhe como as cores do céu mudam para que possamos dormir à noite e acordarmos de dia... Deus está em tudo isso, menino... Não existiria nada disso sem ele, pois nenhum ser humano até hoje poderia criar tais coisas tão grandiosas.


O menino observou tudo isso enquanto o Sol se punha. Alguns minutos depois de sua contemplação, com um ar mais sereno e voz tranquila, o menino se dirigiu ao senhor, dizendo:


— Se alguém pode ser tão grande para fazer tais coisas, realmente, não conseguiríamos vê-lo por completo. Agora não tenho mais medo… sei que meu pai está bem. Mas, eu gostaria de saber como o senhor consegue ser tão feliz e não se cansar, mesmo trabalhando tanto.


O senhor sorri e responde:


— Não sei, só sei que não considero o que faço um trabalho, mas sim, uma oportunidade de me conectar com a natureza. Procuro prestar bastante atenção a cada folha que toco, a cada porção de terra que piso. Isso me faz perceber Deus em tudo o que faço. Ao terminar o dia venho exatamente aqui, onde estamos, no Banco de Deus, para contemplar mais um dia indo embora e, observando o crepúsculo, sinto-me grato por tudo que me é dado, constantemente.


Esse foi o fim do terceiro dia.

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